O cemitério da rua Cachoeira do Sul. Mistério Resumo.


Sabe-se historicamente que o forte surto de gripe espanhola que ocorreu em São Paulo entre os anos de 1918 e 1919, não só vitimou milhares de pessoas como, também, acelerou em muito a inauguração de vários cemitérios por toda Capital e Grande São Paulo.
Não apenas isso, mas em razão da necessidade de sepultamento o mais rápido possível das vítimas dessa epidemia surgiu, improvisadamente, uma série de pequenos cemitérios em locais ermos o mais distante possível das vilas e dos povoados que começavam a se desenvolver, sobretudo na periferia distante da Capital.
Outra justificativa plausível para o surgimento desses cemitérios clandestinos consistia no fato de que no começo do século vinte as dificuldades de locomoção entre periferia e região central (onde já existiam cemitérios públicos) eram extremas, impondo soluções regionais mais breves. Por muito tempo, atravessar o Rio Tietê para região Central só era possível de barco, balsa ou pontes de madeira.
Antigos relatos dão conta que durante a primeira metade daquele século, quando era comum a realização de velórios na casa do próprio falecido ou nas capelas das igrejas da Vila, os corpos chegavam a permanecer até por cinco dias ou mais no local, gerando uma série de inconvenientes para a saúde pública, até que se conseguisse transporte e local para se realizar os sepultamentos. Muitos realizados por carroças puxados por cavalos ou burros.
Segundo antigos moradores da Vila Jaguara, essas provavelmente são as causas remotas de um suposto cemitério clandestino que existiu no final da hoje Rua Cachoeira do Sul, altura do numeral 700, próximo à desembocadura do córrego Cintra no Rio Tietê, antes mesmo da fundação oficial da Vila Jaguara que se deu apenas em 1923.
A localização aproximada desse cemitério seria onde por muito tempo ficou a garagem da Empresa Ipojuca TUR e hoje é um pátio de veículos dos correios. (Segundo Alexandre Domingos, 81anos). Ainda segundo Alexandre, nas proximidades formavam-se lagoas durante as cheias do Rio Tietê.
A existência daquele cemitério tornou-se impossível de ser comprovado, dada as modificações que se sucederam no local até o surgimento das marginais do Rio Tietê, que teve seu curso desviado naquele ponto, anos mais tarde para evitar as constantes enchentes.
Os depoimentos vagos de antigos moradores, hoje com mais de 90 anos, relatam que ali foram enterradas umas poucas pessoas de origem muito humilde e, segundo alguns, o local era utilizado para o sepultamento de pessoas sem família e até de ex- escravos que possivelmente se refugiavam num, também, possível “Quilombo” que teria existido nas proximidades da hoje Rua Todos os Santos, Vila Mangalot, Bairro de Pirituba, onde hoje fica o ponto final do ônibus Jardim Mangalot da Cia. Santa Brígida.
Modernamente a tese de que existiu mesmo um Quilombo naquele local ganhou forças em razão de documentos históricos em Poder da USP e recente pesquisa oficial determinada pelo departamento competente da PMSP.
A tese se sustenta com a comprovação documentada e oficial da existência de fazendas de café de grande porte naquela região, sobretudo, na segunda metade do século XIX, inclusive a Fazenda Anastácio, de propriedade de Domitila de Castro Canto e Melo (Marquesa de Santos 1797-1867) e seu marido de segundo casamento, o Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar.
A Fazenda Anastácio ocupava uma área bastante grande que abrangia parte do Bairro de Pirituba, Parque São Domingos e demais terras naquela localidade, sendo que a casa sede dessa fazenda ficava aproximadamente a cerca de três quilômetros de distância tanto do possível Quilombo, como do cemitério.
Há relatos oficiais de que a Marquesa de Santos viveu por alguns anos nesta casa (a sede da fazenda seria no mesmo local onde fica Casarão de Vila Anastácio construído pelo frigorifico Armour em 1920) e que podia ser vista em convivência com seus escravos fumando cachimbo nos arredores da propriedade, além da benevolência para com os mesmos.
Estamos no ano de 1972 e José Antônio (para mim “Totonho”), um garoto de 11 Anos de idade, morador da Rua Santa Francisca, esquina com a Rua Cachoeira do Sul, brinca naquele terreno enorme e totalmente descampado, não fosse pela existência de um único pé de pitangas, onde teria existido no passado aquele cemitério clandestino.
Ele e seus amigos caçam passarinhos com uma arapuca e com rudimentares estilingues feitos com forquilha de goiabeira e borracha flácida de câmera de pneus usados.
Essa era uma prática muito comum para os meninos daquela geração e quase todos andavam pelas áreas verdes com um estilingue pendurado no pescoço.
Essa prática altamente reprovável para os dias de hoje, só não era pior porque raramente algum daqueles garotos conseguia atingir algum pássaro com aquele instrumento rudimentar. Quando muito, o que a pontaria dos garotos realmente conseguia acertar era a vidraça da casa da vizinha, levando seus pais ao estado de loucura.
Muito embora os garotos jurassem que acertaram vários pássaros em voo com seus estilingues, raramente encontravam o corpo do animal para provar sua capacidade certeira de mira. A coisa ficava mais no imaginário e nas histórias daqueles pequenos caçadores que chegavam até relatar para os amigos que conseguiram derrubar até mesmo os urubus que sobrevoavam o local nos dias de baixa pressão atmosférica.
Esse parece ter sido o resultado da caçada promovida naquele dia por “Totonho” e seus amigos, que frustrados resolveram subir na pitangueira e atirar as frutas com seus estilingues na carroceria dos caminhões que transitavam pela marginal direita do Rio Tietê, numa espécie de torneio para ver quem era o melhor atirador. Brincadeira de criança e praticamente inofensiva não fosse o fato de que eles praticamente acabaram com as pitangas que carregavam aquele pé.
Final de tarde, acabou a munição e todos voltaram para suas casas para tomar banho e esperar o jantar.
Durante seu sono naquela noite, “Totonho” teve um pesadelo muito estranho, onde um homem negro, bastante idoso e com uma tatuagem em forma de crucifixo do lado direito do peito, apareceu e disse assim:
- A modo de que vós mercê pega pitanga? Piau não vem mais canta!
Totonhoacordou suando frio e muito assustado e, não mais conseguiu dormir direito pelo resto da noite. A voz rouca daquele negro tatuado, de cabelos brancos e ralos não saia de sua cabeça.
No dia seguinte era quarta-feira, dia de feira livre na Rua Cachoeira do Sul, e como sempre, Totonho acompanhava sua mãe nas compras e ajudava a carregar as sacolas.
A certa altura a mãe de Totonho pediu para que ele esperasse na fila da barraca de frutas, enquanto ela iria para o outro lado na barraca de ovos que não tinha fila.
Totonhoficou na fila entre as barracas, quando de repente ficou paralisado ao ver a sua frente um homem negro e sem camisa, todo suado que saiu de trás de uma pilha de caixotes daquela barraca e disse:
- Se vos mercê pega pitanga piau não vem canta mais!
Totonhoficou apavorado, aquele negro tinha uma tatuagem no peito igual aquela do homem do sonho, então largou a sacola no chão e foi procurar sua mãe, mais branco do que cera de vela. Ele contou a sua mãe que ficou com medo do homem negro, então foram até a barraca de frutas verem se havia o tal homem lá. O dono da barraca de frutas entregou a sacola deixada porTotonho e disse a sua mãe que ali só estavam trabalhando ele, sua esposa e sua filha mais velha, portanto, não havia nenhum negro naquela barraca.
Chegando a casa, Totonho disse a sua mãe que na noite anterior teve um sonho ruim com aquele mesmo homem e sequer conseguiu comer a refeição que sua mãe preparou para o almoço de tão assustado que estava.
Preocupada com o estado estranho do filho, a mãe de Totonho não teve dúvida, levou o garoto a casa da benzedeira “Dona Maria Velhinha”, que ficava no quarteirão debaixo, na Rua 10.
A benzedeira recebeu Totonho em sua humilde casa e o colocou sentado numa cadeira, na sequência começou rezar em voz muito baixa e fazer gestos de benzimento com um galhinho de arruda numa das mãos.
Então ela fechou os olhos, seu corpo começou a estremecer e a velhinha começou a falar em voz alta numa língua estranha, pouco depois ainda com os olhos fechados assim disse:
- É “Nego Bento”, ele foi escravo fugido e depois trabalhou carregando caixotes nas feiras até morrer de velhice. Ele gosta muito de escutar o canto dos pássaros do mato. Ele está enterrado aqui perto e fala para menino não ter medo dele, mas pede para não machucar os passarinhos e não pegar pitanga se não os passarinhos não vêm mais cantar no lugar de descanso dele.
Totonho ficou petrificado com a fala de “Dona Maria Velhinha” e saiu daquela casa mais apavorado do que quando entrou. Ao chegar com sua mãe em casa, quebrou a forquinha do seu estilingue, picou as borrachas com a tesoura e depois foi jogar os pedaços no cesto de lixo que ficava perto do portão da frente.
Ainda no quintal, Totonho observou um pássaro preto bicando frutas de romã de um pé que ficava no jardim de sua casa. O pássaro cantarolou alto por alguns segundos batendo suas asas e alçou vôo.
Segundo relatos,Totonho nunca mais voltou a caçar pássaros antes de se mudar da Vila Jaguara, se recusava a se aproximar da barraca de frutas nas feiras livres, nunca mais foi visto nas imediações daquele terreno da Rua Cachoeira do Sul e se recusa a entrar em cemitérios até os dias de hoje.
Por isso meu amigo, se eu fosse você, não andaria sozinho à noite por essas imediações!




Texto livre By Reinaldo Domingos 2019, adaptado para Facebook e Zap.
Baseado em histórias de antigos moradores da Vila Jaguara.

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